quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A angústia de Dona Kris


A aflição tornava-se esmagadora, quase insuportável. Uma convulsão interna, intensa, aguçada, aguilhoante, quase uma estocada. O almoço fora uma festança de comida típica alemã: eisbein – ou joelho de porco, em bom português – com chucrute – ou repolho azedo, se preferirem. Dona Kristenfrieda se fartara. Depois que o médico recomendou moderação com comidas gordurosas, não era sempre que se preparava o regalo teuto. Ainda por recomendação médica, a velha senhora se policiou na ingestão das carnes, mas não teve limites quando ao chucrutz – afinal, liberado pelo clínico. E por que aquelas pessoas tinham que vir logo depois do almoço?
Preparava-se, para dali a uma semana,  a festa do terceiro aniversário do pequeno Paulo Afonso, bisneto da Dona Kris. Paulo Henrique, o pai, preferiu fazer a comemoração em casa mesmo, a sala era bastante ampla, assim como as demais dependências da residência. E o pessoal da empresa de decoração veio para verificar o local. Tirar medidas, estudar a organização, essas coisas. E dê-lhe trocar ideias com os familiares, Dona Kristenfrieda inclusive: balões aqui e ali, figuras naquela parede, um brinquedo acolá... todos se viram envolvidos na azáfama.
Se pelo menos a deixassem sair... nas vezes em que tentou, foi rapidamente convocada de volta para mais um palpitezinho, uma opinião de “gente madura, experiente...” E o tormento aumentando, a angústia crescendo...
Afinal, estavam saindo... satisfeitos (ou não, quem saberá?) com o levantamento dos dados. Ainda bem. Saíram todos. Hora de liberar o retido pum, o refreado flato que angustiava a idosa senhora. Simultaneamente ao peculiar sibilo rouco, a vibração roufenha, seguiram-se os costumeiros, vários (muitos, no caso) e prolongados segundos de expulsão do gás contido a muito custo para evitar o vexame ante familiares e estranhos que tão inoportunamente ousaram invadir – mesmo que indiretamente – a privacidade da macróbia.
Quase que instantaneamente instalou-se no aposento aquele típico odor que distingue ocasiões e eventos semelhantes: um misto de enxofre e algo mais, assim como ovo podre ou coisa que o valha. Não exatamente balsâmico ou fragrante, antes acatingado e fedido, nem tanto para o próprio (ou a própria, no caso) autor, mas quase insuportável para os circunstantes – e quanto mais próximos, pior! – mas felizmente afastados a tempo. Assim aliviada, embora envolta na invisível bruma exalada em tão aflitivo momento, Dona Kris se deixou cair sentada no sofá.
Mas eis que voltam! Oh, mein Gott! O que será que esqueceram? Algum detalhe, talvez. Quiçá uma medida, uma olhada. Um palpite? Certamente! Eis que invadem de novo a sala, todos eles... mas com ela não! Não haverão de tirar-lhe mais nenhuma palavra, nem um aceno, nada, nada mais. Nem um suspiro!
Faces rubras, ardendo de vergonha, Dona Kristenfrieda se levanta e se precipita corredor afora, em direção aos seus domínios, ao quarto confortante onde afinal pode curtir descansadamente os efeitos do chucrutz domingueiro, sem perturbações ou atropelos de qualquer ordem.

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