A aflição tornava-se esmagadora,
quase insuportável. Uma convulsão interna, intensa, aguçada, aguilhoante, quase
uma estocada. O almoço fora uma festança de comida típica alemã: eisbein – ou joelho de porco, em bom
português – com chucrute – ou repolho azedo, se preferirem. Dona Kristenfrieda
se fartara. Depois que o médico recomendou moderação com comidas gordurosas,
não era sempre que se preparava o regalo teuto. Ainda por recomendação médica,
a velha senhora se policiou na ingestão das carnes, mas não teve limites quando
ao chucrutz – afinal, liberado pelo
clínico. E por que aquelas pessoas tinham que vir logo depois do almoço?
Preparava-se, para dali a uma
semana, a festa do terceiro aniversário
do pequeno Paulo Afonso, bisneto da Dona Kris. Paulo Henrique, o pai, preferiu
fazer a comemoração em casa mesmo, a sala era bastante ampla, assim como as
demais dependências da residência. E o pessoal da empresa de decoração veio
para verificar o local. Tirar medidas, estudar a organização, essas coisas. E
dê-lhe trocar ideias com os familiares, Dona Kristenfrieda inclusive: balões
aqui e ali, figuras naquela parede, um brinquedo acolá... todos se viram
envolvidos na azáfama.
Se pelo menos a deixassem sair...
nas vezes em que tentou, foi rapidamente convocada de volta para mais um
palpitezinho, uma opinião de “gente madura, experiente...” E o tormento
aumentando, a angústia crescendo...
Afinal, estavam saindo...
satisfeitos (ou não, quem saberá?) com o levantamento dos dados. Ainda bem. Saíram
todos. Hora de liberar o retido pum, o refreado flato que angustiava a idosa
senhora. Simultaneamente ao peculiar sibilo rouco, a vibração roufenha, seguiram-se
os costumeiros, vários (muitos, no caso) e prolongados segundos de expulsão do
gás contido a muito custo para evitar o vexame ante familiares e estranhos que
tão inoportunamente ousaram invadir – mesmo que indiretamente – a privacidade
da macróbia.
Quase que instantaneamente
instalou-se no aposento aquele típico odor que distingue ocasiões e eventos
semelhantes: um misto de enxofre e algo mais, assim como ovo podre ou coisa que
o valha. Não exatamente balsâmico ou fragrante, antes acatingado e fedido, nem
tanto para o próprio (ou a própria,
no caso) autor, mas quase insuportável para os circunstantes – e quanto mais
próximos, pior! – mas felizmente afastados a tempo. Assim aliviada, embora
envolta na invisível bruma exalada em tão aflitivo momento, Dona Kris se deixou
cair sentada no sofá.
Mas eis que voltam! Oh, mein Gott! O que será que
esqueceram? Algum detalhe, talvez. Quiçá uma medida, uma olhada. Um palpite?
Certamente! Eis que invadem de novo a sala, todos eles... mas com ela não! Não
haverão de tirar-lhe mais nenhuma palavra, nem um aceno, nada, nada mais. Nem
um suspiro!
Faces rubras, ardendo de vergonha, Dona Kristenfrieda se levanta
e se precipita corredor afora, em direção aos seus domínios, ao quarto
confortante onde afinal pode curtir descansadamente os efeitos do chucrutz domingueiro, sem perturbações
ou atropelos de qualquer ordem.
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